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quarta-feira, 5 de maio de 2010

Gil Vicente

editora de Literatura ArtCulturalBrasil
Arapongas - Paraná


Gil Vicente

(1465? — 1536?)

Introdução

É considerado o primeiro grande dramaturgo português, além de poeta de renome. Há quem o identifique com o ourives, autor da Custódia de Belém, mestre da balança, e com o mestre de Retórica do rei Dom Manuel. Enquanto homem de teatro, parece ter também desempenhado as tarefas de músico, ator e encenador. É frequentemente considerado, de uma forma geral, o pai do teatro português, ou mesmo do teatro ibérico já que também escreveu em castelhano - partilhando a paternidade da dramaturgia espanhola com Juan del Encina.

A obra vicentina é tida como reflexo da mudança dos tempos e da passagem da Idade Média para o Renascimento, fazendo-se o balanço de uma época onde as hierarquias e a ordem social eram regidas por regras inflexíveis, para uma nova sociedade onde se começa a subverter a ordem instituída, ao questioná-la. Foi o principal representante da literatura renascentista portuguesa, anterior a Camões, incorporando elementos populares na sua escrita que influenciou, por sua vez, a cultura popular portuguesa.

Vida

Apesar de se considerar que a data mais provável para o seu nascimento tenha sido em 1466 — hipótese defendida, entre outros, por Queirós Veloso — há ainda quem proponha as datas de 1460 (Braamcamp Freire) ou entre 1470 e 1475 (Brito Rebelo). Se nos basearmos nas informações veiculadas na própria obra do autor, encontraremos contradições. O Velho da Horta, a Floresta de Enganos ou o Auto da Festa, indicam 1452, 1470 e antes de 1467, respectivamente. Desde 1965, quando decorreram festividades oficiais comemorativas do quincentenário do nascimento do dramaturgo, que se aceita 1465 de forma quase unânime.

Frei Pedro de Poiares localizava o seu nascimento em Barcelos, mas as hipóteses de assim ter sido são poucas. Pires de Lima propôs Guimarães para sua terra natal - hipótese essa que estaria de acordo com a identificação do dramaturgo com o ourives, já que a cidade de Guimarães foi durante muito tempo berço privilegiado de joalheiros. O povo de Guimarães orgulha-se desta hipótese, como se pode verificar, por exemplo, na designação dada a uma das escolas do Concelho (em Urgeses), que homenageia o autor.

Lisboa é também muitas vezes defendida como o local certo. Outros, porém, indicam as Beiras para local de nascimento - de fato, verificam-se várias referencias a esta área geográfica de Portugal, seja na toponímia como pela forma de falar das personagens. José Alberto Lopes da Silva assinala que não há na obra vicentina referências a Barcelos nem a Guimarães, mas sim dezenas de elementos relacionados com as Beiras. Há obras inteiras, personagens, caracteres, linguagem. O conhecimento que o autor mostra desta região do país não era fácil de obter se tivesse nascido no norte e vivido a maior parte da sua vida em Évora e Lisboa.

Cada livro publicado sobre Gil Vicente é, quase sempre, defensor de uma qualquer tese que identifique ou não o autor ao ourives. A favor desta hipótese existe o fato de o dramaturgo usar com propriedade termos técnicos de ourivesaria na sua obra.

Alguns intelectuais portugueses polemizaram sobre o assunto. Camilo Castelo Branco escreveu, em 1881, o documento "Gil Vicente, Embargos à fantasia do Sr. Teófilo Braga" - este último defendia uma só pessoa para o ourives e para o poeta, enquanto que Camilo defendia duas pessoas distintas. Teófilo Braga mudaria de opinião depois de um estudo de Sanches de Baena que mostrava a genealogia distinta de dois indivíduos de nome Gil Vicente, apesar de Brito Rebelo ter conseguido comprovar a inconsistência histórica destas duas genealogias, utilizando documentos da Torre do Tombo. Lopes da Silva, na obra citada, avança uma dezena de argumentos para provar que Gil Vicente era ourives quando escreveu a sua primeira obra, uma imitação do Auto del Repelón, de Juan del Encina a quem pede emprestada não só a história, mas também as personagens com o seu respectivo idioma, o saiaguês.

Apesar de se considerar que a data mais provável para o seu nascimento tenha sido em 1466, Sabe-se que casou com Branca Bezerra, de quem nasceram Gaspar Vicente(que morreu em 1519) e Belchior Vicente(nascido em 1505). Depois de enviuvar, casou com Melícia Rodrigues de quem teve Paula Vicente (1519-1576), Luís Vicente (que organizou a compilação das suas obras) e Valéria Borges. Presume-se que tenha estudado em Salamanca.


O seu primeiro trabalho conhecido, a peça em sayaguês Auto da Visitação, também conhecido como Monólogo do Vaqueiro, foi representada nos aposentos da rainha D. Maria, consorte de Dom Manuel, para celebrar o nascimento do príncipe (o futuro D. João III) - sendo esta representação considerada como o marco de partida da história do teatro português. Ocorreu isto na noite de 8 de Junho de 1502, com a presença, além do rei e da rainha, de Dona Leonor, viúva de D. João II e D. Beatriz, mãe do rei.


Tornou-se, então, responsável pela organização dos eventos palacianos. Dona Leonor pediu ao dramaturgo a repetição da peça pelas matinas de Natal, mas o autor, considerando que a ocasião pedia outro tratamento, escreveu o Auto Pastoril Castelhano. De fato, o Auto da Visitação tem elementos claramente inspirados na "adoração dos pastores", de acordo com os relatos do nascimento de Cristo. A encenação incluía um ofertório de prendas simples e rústicas, como queijos, ao futuro rei, ao qual se pressagiavam grandes feitos. Gil Vicente que, além de ter escrito a peça, também a encenou e representou, usou, contudo, o quadro religioso natalício numa perspectiva profana. Perante o interesse de Dona Leonor, que se tornou a sua grande protetora nos anos seguintes, Gil Vicente teve a noção de que o seu talento lhe permitiria mais do que adaptar simplesmente a peça para ocasiões diversas, ainda que semelhantes.

Se foi realmente ourives, terminou a sua obra-prima nesta arte - a Custódia de Belém - feita para o Mosteiro dos Jerónimos, em 1506, produzida com o primeiro ouro vindo de Moçambique. Três anos depois, este mesmo ourives tornou-se controlador do património de ourivesaria no Convento de Cristo, em Tomar, Nossa Senhora de Belém e no Hospital de Todos-os-Santos, em Lisboa.

Consegue-se ainda apurar algumas datas em relação a esta personagem que tanto pode ser una como múltipla: em 1511 é nomeado vassalo de el-Rei e, um ano depois, sabe-se que era representante da bandeira dos ourives na "Casa dos Vinte e Quatro". Em 1513, o mestre da balança da Casa da Moeda, também de nome de Gil Vicente (se é o mesmo ou não, como já se disse, não se sabe), foi eleito pelos outros mestres para os representar junto à vereação de Lisboa.

Será ele que dirigirá os festejos em honra de Dona Leonor, a terceira mulher de Dom Manuel, no ano de 1520, um ano antes de passar a servir Dom João III, conseguindo o prestígio do qual se valeria para se permitir a satirizar o clero e a nobreza nas suas obras ou mesmo para se dirigir ao monarca criticando as suas opções. Foi o que fez em 1531, através de uma carta ao rei onde defende os cristãos-novos.

Morreu em lugar desconhecido, talvez em 1536 porque é a partir desta data que se deixa de encontrar qualquer referência ao seu nome nos documentos da época, além de ter deixado de escrever a partir desta data.

Contexto histórico

O Teatro português antes de Gil Vicente

O teatro português não nasceu com Gil Vicente. Esse mito, criado por vários autores de renome, como Garcia de Resende, na sua Miscelânia, ou o seu próprio filho, Luís Vicente, por ocasião da primeira edição da "Compilação" da obra completa do pai, poderá justificar-se pela importância inegável do autor no contexto literário peninsular, mas não é de todo verdadeiro já que existiam manifestações teatrais antes da noite de 7 para 8 de Junho de 1502, data da primeira representação do "Auto do Vaqueiro" ou "Auto da Visitação", nos aposentos da rainha.

Já no reinado de Sancho I, os dois atores mais antigos portugueses, Bonamis e Acompaniado, realizaram um espectáculo de "arremedilho", tendo sido pagos pelo rei com uma doação de terras. O arcebispo de Braga, Dom Frei Telo, refere-se, num documento de 1281, a representações litúrgicas por ocasião das principais festividades católicas. Em 1451, o casamento da infanta Dona Leonor com o imperador Frederico III da Alemanha foi acompanhado também de representações teatrais.

Segundo as crônicas portuguesas de Fernão Lopes, Zurara, Rui de Pina ou Garcia de Resende, também nas cortes de D. João I, D. Afonso V e D.João II se faziam encenações espectaculares. Rui de Pina refere-se, por exemplo, a um "momo", em que Dom João II participou pessoalmente, fazendo o papel de "Cavaleiro do Cisne", num cenário de ondas agitadas (formadas com panos), numa frota de naus que causou espanto, entrando sala adentro acompanhado do som de trombetas, atabales, artilharia e música executada por menestréis, além de uma tripulação atarefada de atores vestidos de forma espetacular.

Contudo, pouco resta dos textos dramáticos pré-vicentinos. Além das éclogas dialogadas de Bernardim Ribeiro, Cristóvão Falcão e Sá de Miranda, André Dias publicou em 1435 um "Pranto de Santa Maria" considerado um esboço razoável de um drama litúrgico.

No Cancioneiro Geral de Garcia de Resende existem alguns textos também significativos, como o Entremez do Anjo (assim designado por Teófilo Braga), de D. Francisco de Portugal, Conde de Vimioso, ou as trovas de Anrique da Mota (ou Farsa do alfaiate), segundo Leite de Vasconcelos) dedicados a temas e personagens chocarreiros como "um clérigo sobre uma pipa de vinho que se lhe foi pelo chão", entre outros episódios divertidos.

É provável que Gil Vicente tenha assistido algumas destas representações. Viria, contudo, sem qualquer dúvida, a superá-las em maestria e em profundidade, tal como diria Marcelino Menéndez Pelayo ao considerá-lo a "figura mais importante dos primitivos dramaturgos peninsulares", chegando mesmo a dizer que não havia "quem o excedesse na Europa do seu tempo".

Obra

Características principais

A sua obra vem no seguimento do teatro ibérico popular e religioso que já se fazia, ainda que de forma menos profunda. Os temas pastoris, presentes na escrita de Juan del Encina vão influenciar fortemente a sua primeira fase de produção teatral e permanecerão esporadicamente na sua obra posterior, de maior diversidade temática e sofisticação de meios. De fato, a sua obra tem uma vasta diversidade de formas: o auto pastoril, a alegoria religiosa, narrativas bíblicas, farsas episódicas e autos narrativos.

O seu filho, Luís Vicente, na primeira compilação de todas as suas obras, classificou-as em autos e mistérios (de caráter sagrado e devocional) e em farsas, comédias e tragicomédias (de caráter profano). Contudo, qualquer classificação é redutora - de fato, basta pensar na Trilogia das Barcas para se verificar como elementos da farsa (as personagens que vão aparecendo, há pouco saídas deste mundo) se misturam com elementos alegóricos religiosos e místicos (o Bem e o Mal).

Gil Vicente retratou, com refinada comicidade, a sociedade portuguesa do século XVI, demonstrando uma capacidade acutilante de observação ao traçar o perfil psicológico das personagens. Crítico severo dos costumes, de acordo com a máxima que seria ditada por Molière ("Ridendo castigat mores" - rindo se castigam os costumes), Gil Vicente é também um dos mais importantes autores satíricos da língua portuguesa. Em 44 peças, usa grande quantidade de personagens extraídos do espectro social português da altura. É comum a presença de marinheiros, ciganos, camponeses, fadas e demônios e de referências – sempre com um lirismo nato – a dialetos e linguagens populares.

Entre suas obras estão Auto Pastoril Castelhano (1502) e Auto dos Reis Magos (1503), escritas para celebração natalina. Dentro deste contexto insere-se ainda o Auto da Sibila Cassandra (1513), que, embora até muito recentemente tenha sido visto como um prenúncio dos ideais renascentistas em Portugal, retoma uma narrativa já presente na General Estória de Afonso X. Sua obra-prima é a trilogia de sátiras Auto da Barca do Inferno (1516), Auto da Barca do Purgatório (1518) e Auto da Barca da Glória (1519). Em 1523 escreve a Farsa de Inês Pereira.

Essa trilogia de autos satíricos foram os que mais me encantaram na época em que a Universidade era um quase meio da minha jornada de estudos!


Teatro Gil Vicente - Mocambique 1929

São geralmente apontados, como aspectos positivos das suas peças, a imaginação e originalidade evidenciadas; o sentido dramático e o conhecimento dos aspectos relacionados com a problemática do teatro.

Alguns autores consideram que a sua espontaneidade, ainda que refletindo de forma eficaz os sentimentos coletivos e exprimindo a realidade criticável da sociedade a que pertencia, perde em reflexão e em requinte. Em verdade, a sua forma de exprimir é simples, chã e direta, sem grandes floreados poéticos.

Acima de tudo, o autor exprime-se de forma inspirada, dionisíaca, nem sempre obedecendo a princípios estéticos e artísticos de equilíbrio. É também versátil nas suas manifestações: se, por um lado, parece ser uma alma rebelde, temerária, impiedosa no que toca em demonstrar os vícios dos outros, quase da mesma forma que se esperaria de um inconsciente e tolo bobo da corte, por outro lado, mostra-se dócil, humano e enternecido na sua poesia de cariz religioso e quando se trata de defender aqueles a quem a sociedade maltrata. A defesa da sociedade maltratada parece a sina dos grandes escritores, quaisquer sejam os tempos!

O seu lirismo religioso, de raiz medieval e que demonstra influências das Cantigas de Santa Maria está bem presente, por exemplo, no Auto de Mofina Mendes, na cena da Anunciação, ou numa oração dita por Santo Agostinho no Auto da Alma. Por essa razão é, por vezes, designado por "poeta da Virgem".

O seu lirismo patriótico presente em "Exortação da Guerra", Auto da Fama ou Cortes de Júpiter, não se limita a glorificar, em estilo épico e orgulhoso, a nacionalidade: é crítico e eticamente preocupado, principalmente no que diz respeito aos vícios nascidos da nova realidade económica, decorrente do comércio com o Oriente (Auto da Índia). O lirismo amoroso, por outro lado, consegue aliar algum erotismo e alguma brejeirice com influências mais eruditas (Petrarca, por exemplo).

Auto da Barca do Inferno - excertos comentados

Trecho 1

“Corregedor – Ó arrais dos gloriosos,

passai-nos neste batel!

Anjo – Oh, pragas pera papel

pera as almas odiosos!

Como vindes preciosos,

sendo filhos da ciência!

Corregedor – Oh, habetatis, clemência

e passai-nos como vossos!

Parvo – Hou, homem dos breviários,

rapinastis coelhorum

et pernis perdigotorum

e mijais nos campanários!”

Nesse trecho, há uma amostra do realismo lingüístico de Gil Vicente. O Corregedor utiliza termos em latim para se defender. O Parvo faz, então, uma hilariante paródia de seu discurso: “rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum”, ou seja, “rapinastes – roubastes – coelhos, pernis e perdizes”.

Trecho 2
“Anjo – Eu não sei quem te cá traz...

Brísida – Peço-vo-lo de giolhos! (joelhos)

Cuidais que trago piolhos,

anjo de Deos, minha rosa?

Eu sô aquela preciosa

que dava as moças a molhos,

a que criava as meninas

pera os cónegos da Sé...

Passai-me, por vossa fé,

meu amor, minhas boninas, (margaridas)

olhos de perlinhas finas!

E eu som apostolada,

angelada e martelada,

e fiz cousas mui divinas.

Santa Úrsula nom converteu

tantas cachopas como eu (...)” (meninas, raparigas)

Brísida Vaz tenta convencer o Anjo a deixá-la entrar na barca celeste. Usando linguagem vulgar, como se o Anjo fosse um dos seus clientes, chama-o de “meu amor, minhas boninas”, e afirma que espera salvar-se porque “criava as meninas” (prostitutas) para os padres da Sé -- outra crítica do autor aos maus sacerdotes.

Um pouquinho diferente na atualidade, conforme os noticiários jornalísticos!
Vale também ressaltar o trecho abaixo, extraído do Auto da Lusitânia.

Entra Todo Mundo, homem rico mercador, e faz que anda buscando alguma coisa que se lhe perdeu; e logo após ele um homem, vestido como pobre, este se chama Ninguém, e diz:

Ninguém.:

Que andas tu aí buscando

Todo Mundo:

Mil cousas ando a buscar:

delas não posso achar,

porém ando porfiando.

por quão bom é porfiar.

Ninguém:

como hás o nome, cavaleiro?

Todo Mundo:

Eu hei nome Todo Mundo,

e meu tempo todo inteiro

sempre é buscar dinheiro,

e sempre nisto me fundo.

Ninguém:

Eu hei Ninguém,

e busco a consciência.

Belzebu:

Esta é boa experiência:

Dinato, escreve isto bem.

Dinato:

Que escreverei, companheiro?

Belzebu:

Que Ninguém busca consciência,

e Todo Mundo dinheiro.

Ninguém:

E agora que buscas lá?

Todo Mundo:

Busco honra muito grande.

Ninguém:

E eu virtude, que Deus mande

que tope com ele já.

Belzebu:

Outra adição nos acude:

escreve logo aí, a fundo,

que busca honra Todo Mundo,

e Ninguém busca virtude.

Ninguém:

Buscas outro mor bem qu'esse?

Todo Mundo:

Busco mais quem me louvasse

tudo quanto eu fizesse.

Ninguém:

E eu quem me reprendesse

em cada cousa que errasse.

Belzebu:

Escreve mais.

Dinato:

Que tens sabido?

Belzebu:

Que quer um extremo grado

Todo Mundo ser louvado,

e Ninguém ser reprendido.

Ninguém:

Buscas mais, amigo meu?

Todo Mundo:

Busco a vida e quem me dê

Ninguém:

A vida não sei que é,

a morte conheço eu.

Belzebu:

Escreve lá outra sorte.

Dinato:

Que sorte?

Belzebu:

Muito garrida

Todo Mundo busca vida,

e Ninguém conhece a morte.

Todo Mundo:

E mais queria o paraiso,

sem mo ninguém estovar.

Ninguém:

E eu ponho-me a pagar

quanto devo para isso.

Belzebu:

Escreve com muito aviso.

Dinato:

Que escreverei?

Belzebu:

Escreve

Que Todo Mundo quer paraíso,

e Ninguém paga o que deve.

Todo Mundo:

Folgo muito d'enganar,

e mentir nasceu comigo.

Ninguém:

Eu sempre verdade digo,

sem nunca me desviar.

Belzebu:

Ora escreve lá, compadre,

não sejas tu preguiçoso.

Dinato:

Quê?

Belzebu:

Que Todo Mundo é mentiroso,

e Ninguém diz a verdade.

Ninguém:

Que mais buscas?

Todo Mundo:

Lisonjear.

Ninguém:

Eu estou todo desengano.

Belzebu:

Escreve, ande lá, mano.

Dinato:

Que me mandas assentar?

Belzebu:

Põe ai mui declarado,

não te fique no tinteiro:

Todo Mundo é lisonjeiro,

e Ninguém desenganado.


Elementos filosóficos na obra vicentina

A obra de Gil Vicente transmite uma visão do mundo que se assemelha e se posiciona como uma perspectiva pessoal do Platonismo: existem dois mundos - o Mundo Primeiro, da serenidade e do amor divino, que leva à paz interior, ao sossego e a uma "resplandecente glória", como dá conta sua carta a D. João III; e o Mundo Segundo, aquele que retrata nas suas farsas: um mundo "todo ele falso", cheio de "canseiras", de desordem sem remédio, "sem firmeza certa". Estes dois mundos refletem-se em temas diversos da sua obra: por um lado, o mundo dos defeitos humanos e das caricaturas, servidos sem grande preocupação de verosimilhança ou de rigor histórico.

Muitos autores criticam em Gil Vicente os anacronismos e as falhas na narrativa (aquilo a que chamaríamos hoje de "gafes"), mas, para alguém que considerava o mundo retratado como pleno de falsidades, essas seriam apenas mais algumas, sem importância e sem dano para a mensagem que se pretendia transmitir. Por outro lado, o autor valoriza os elementos míticos e simbólicos religiosos do Natal: a figura da Virgem Mãe, do Deus Menino, da noite natalícia, demonstrando aí um zelo lírico e uma vontade de harmonia e de pureza artística que não existem nas suas mais conhecidas obras de crítica social.

Sem as características do maniqueísmo que tantas vezes se constatam nas peças teatrais de quem defende uma tal visão do Mundo, há, realmente, a presença de um forte contraste nos elementos cênicos usados por Gil Vicente: a luz contra a sombra, não numa luta feroz, mas em convivência quase amigável. A noite de natal torna-se também aqui a imagem perfeita que resume a concepção cósmica de Gil Vicente: as grandes trevas emolduram a glória divina da maternidade, do nascimento, do perdão, da serenidade e da boa vontade - mas sem a escuridão, que seria da claridade?

Legado

Note-se que a obra de Gil Vicente não se resume ao teatro, estendendo-se também à poesia. Podemos citar vários vilancetes e cantigas, ainda influenciadas pelo estilo palaciano e temas dos trovadores. Vários compositores trabalharam poemas de Gil Vicente na forma de lied (principalmente algumas traduções para o alemão, feitas por Emanuel von Geibel), como Max Bruch ou Robert Schumann, o que demonstra o carácter universal da sua obra. Os seus filhos, Paula e Luís Vicente, foram os responsáveis pela primeira edição das suas obras completas. Em 1586, sai uma segunda edição, com muitas passagens censuradas pela Inquisição. Só no século XIX se faria a redescoberta do autor, com a terceira edição de 1834, em Hamburgo, levada a cabo por Barreto Feio.

A obra vicentina completa contém aproximadamente 44 peças (17 escritas em português, 11 em castelhano e 16 bilingües).

Obras por ordem cronológica


• Monólogo do Vaqueiro (eBook) ou Auto da Visitação (1502)

• Auto Pastoril Castelhano (1502)

• Auto dos Reis Magos (1503)

• Auto de São Martinho (1504)

• Quem Tem Farelos? (1505)

• Auto da Alma (1508)

• Auto da Índia (1509)

• Auto da Fé (1510)

• O Velho da Horta (1512)

• Exortação da Guerra (1513)

• Comédia do Viúvo (1514)

• Auto da Fama (1516)

• Auto da Barca do Inferno (1517)

• Auto da Barca do Purgatório(1518)

• Auto da Barca da Glória (1519)

• Cortes de Júpiter (1521)

• Comédia de Rubena (1521)

• Pranto de Maria Parda (eBook)

• Farsa de Inês Pereira (1523)

• Auto Pastoril Português (1523)

• Frágua de Amor (1524)

• Farsa do Juiz da Beira (1525)

• Farsa do Templo de Apolo (1526)

• Auto da Nau de Amores (1527)

• Auto da História de Deus (1527)

• Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela (1527)

• Farsa dos Almocreves (1527)

• Auto da Feira (1528)

• Farsa do Clérigo da Beira (1529)

• Auto do Triunfo do Inverno (1529)

• Auto da Lusitânia, intercalado com o entremez Todo-o-Mundo e Ninguém (1532)

• Auto de Amadis de Gaula (1533)

• Romagem dos Agravados (1533)

• Auto da Cananea (1534)

• Auto de Mofina Mendes (1534)

• Floresta de Enganos (1536)



Referências

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. de Yara Frateschi Vieira. 2. ed. São Paulo: HUCITEC/Brasília:Editora da Universidade de Brasília, 1993.

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BRAGA, Teófilo, História da Literatura Portuguesa: Eschola de Gil Vicente. Porto, Livraria Chardron, 1898.

BRAIT, Beth. A personagem. 2. ed. São Paulo: Ática, 1985.

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Covilhã, O mundo religioso de Gil Vicente, Universidade da Beira Interior, 2002

FORSTER. E. M. Aspectos do romance. 4. ed. Porto Alegre: Globo, 2005 [1ª Edição, 1927].

LAFER, Celso, Gil Vicente e Camões, São Paulo: Ática, 1978.

MATEUS, Osório. Tormenta. Lisboa: Quimera, 1988

MUNIZ, Márcio R. C. 1531: Gil Vicente, Judeus e a instauração da Inquisição em Portugal. Contexto, Vitória, ano 7, 2000, p. 95-108.

MUNIZ, Márcio R. C. A estrutura processional e o teatro de Gil Vicente. Camoniana, São Paulo, v. 13, 2003, p. 65-76.

MUNIZ, Márcio R. C. Qorpo-Santo e Gil Vicente: diálogos possíveis. In: MALUF, Sheila Diab; AQUINO, Ricardo Big. (Org.). Reflexões sobre a cena. Maceió/ Salvador: EdUFAL/ EdUFBA, 2005, p. 213-232. 19

RAMALHO, Maria de Lourdes Nunes. Teatro de Lourdes Ramalho: 2 textos para ler e/ou montar (As velhas e O trovador encantado). Org., apres., notas e estudos de Valéria Andrade e Diógenes Maciel. Campina Grande/ João Pessoa: Bagagem/ Idéia, 2005.

RAMALHO, Maria de Lourdes Nunes. Raízes ibéricas, mouras e judaicas do Nordeste. João Pessoa: EdUFPB, 2002.

SARAIVA, Antônio José. Inquisição e Cristãos-Novos. 5. ed. Lisboa: Estampa, 1985.

VICENTE, Gil. As obras de Gil Vicente. Direção científica de José Camões. Lisboa: Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa/ Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2002, v. 1.



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